Dar (ou não dar) matéria nova

27/03/2020

Pode-se ou não dar matéria nova neste período em que os alunos estão em casa...? Pode-se ou não alterar a ordem dos conteúdos, dar a volta ao texto, ao contexto, ao que acontece, ao que não acontece...


Confesso que não sei (nem quero saber) o que o Ministério diz, sabe ou quer saber sobre este assunto. Porque é um "não assunto". É que, como todos sabem, não se consegue ensinar coisa alguma só porque está na hora de se "dar" esta ou aquela matéria. E muito menos se consegue evitar que alguém aprenda o que quer que seja, só porque não é a hora certa ou porque isso não é permitido. Aprender não se obriga nem se proíbe. Ou melhor: quando se obriga, menos se aprende; quando se proíbe, mais apetece.


Aprender acontece em contexto, em interação. Múltiplos, inúmeros factores se conjugam (ou se desconjugam). Mas não é algo que se faça acontecer porque alguém diz ou alguém manda, porque se dá ou se tira. E, como a investigação tão bem demonstra, acontece quase sempre, muito mais de dentro para fora, do que de fora para dentro.

Deixem ver se com um exemplo eu me explico melhor.

Sou avô, sou psicóloga, trabalho com muitas crianças, difíceis ou em grande dificuldade. Mas também muito inteligentes e argutas. Surpreendem-me tantas vezes.

Esta questão da matéria nova fez-me recordar o que tantas vezes tenho ouvido dizer a crianças no primeiro ano: "esta letra aqui eu já sei, mas ainda não a dei". Dizem aquilo como quem me conta um segredo, algo de proibido. Porque de algum modo sabem que não é permitido saber o que ainda não foi dado. E eu sorrio.

Tantas coisas nós lhes damos e eles não querem nem saber, tantas coisas eles descobrem e sabem, sem que seja preciso alguém lhes dar o que quer que seja. Mas é assim: temos uma escola centrada mais no que se dá, do que no que se recebe; mais centrada no que "não se pode" do que naquilo que já se sabe. E já se sabe que isso só serve para criar inúmeras dificuldades, dificuldades daquelas que não ajudam ninguém a aprender.

A foto que hoje aqui partilho já tem muitos anos, mas poderia ter dias ou apenas algumas horas... a que currículo se obriga um contexto assim?

Talvez este tempo de Escola em Casa (ou de casa sem escola) nos ajude a perceber que nenhum currículo se aplica de forma idêntica em todos os contextos e a todos os alunos, que nenhum currículo existe descontextualizado. O currículo é uma referência, é uma forma de dar consistência ao trabalho especializado, personalizado e inclusivo, de milhares de professores que todos os dias o humanizam, o concretizam. Não é um dogma nem letra de lei. Desenvolve-se e adapta-se a cada contexto, a cada caso. E neste caso, no mínimo, a cada CASA.

Publicado a 26.03.2020 no Facebook (autoria: Dulce Gonçalves)


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